sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Juristas e tecnólogos: quem precisa entender quem?



Tenho recebido vários questionamentos a respeito do artigo O machine learning e o máximo apoio ao juiz.
(clique aqui para ver artigo). 


Naturalmente, os questionamentos são diferentes segundo venham de tecnólogos ou de juristas.

Os tecnólogos costumam ter dúvidas sobre aspectos jurídicos.

Para os tecnólogos, é incompreensível trabalhar-se sobre o conjunto de dados de um juiz para descobrir formas de ajudá-lo a fazer o trabalho que somente ele pode fazer (competência/juiz natural). Somente ele? 
E fica pior quando se diz que deve ser feito exatamente do jeito que aquele juiz faz.
Os técnicos sabem que há ferramentas para isso, mas acham uma imensa perda de tempo. Oras, e se o jeitão de decidir do cara está errado?

Os técnicos querem logo achar o jeito correto e único de resolver definitivamente e generalizadamente o problema, analisando todas as sentenças brasileiras, desde a última alteração legal sobre a matéria. Quanto mais processos e sentenças melhor. Só aí parecem admitir que se estaria trabalhando, por exemplo,  no âmbito dos big data, aplicando técnicas de IA adequadamente (como analytics, jurimetria, volumetria etc) de modo a resolver, de uma vez por todas, os problemas que a Justiça humana não consegue resolver. Esse negócio de "cada cabeça uma sentença" tem de ser superado!

Daí preferirem alinhar-se, nas decisões algorítmicas, às visões de A ou de B (padrões/patterns), conforme um critério majoritário (probability), ou numa mescla miraculosa de ambas. O embate atual no STF, sobre as questões da lava-jato,  é um bom exemplo de como se convive juridicamente com a contradição desafiando as soluções únicas e corretas.
E, de fato, é mesmo difícil de entender e aceitar que o Direito não é assim como sonhado, limpo de contradições e de diferentes visões (no STF uma turma solta e a outra prende?!?). Como a fonte das inovações é, em geral, o país do norte com seu sistema jurídico de precedentes, a cabeça dos técnicos dá um nó.

Tomando-se o termo processo no sentido da expressão  processo da história, por exemplo, ou de processo dialético hegeliano (os tecnólogos preferem processo industrial)pode-se dizer que o direito estatutário continental é contradição em processo (o Direito do Brasil).   E isso conflita com a visão tecnológica do "é ou não é com terceira opção excluída!".

Um rápido bosquejo em obras de IA demonstra que a "verdade" (única?), mesmo sob inspiração das lógicas não ortodoxas (em que são utilizados mecanismos lógicos para diluir a fixação do verdadeiro), é um norte que nunca é abandonado pelos tecnólogos.

Jaron Lanier e Yuval Harari, em recentes palestras TED (referidas no artigo), demonstram imensa preocupação com esses centros de poder totalizantes, senhores absolutos da verdade única e verdadeira sobre todas e quaisquer coisas.  O Direito tem seus meios de "fixá-la" como fez, por exemplo,  no caso das decisões de repercussão geral e onde o Victor está sendo preparado para ajudar (STF). Mas os caminhos estão bem regulamentados pelo próprio Direito. O que o Victor vai fazer é o que o Direito estabeleceu que deve ser feito de maneira única. Verdadeira ou não, justa ou não, essa é a forma legal de fazer até que o sistema jurídico mude o jeitão, não a tecnologia.
E, além disso, é bom que os tecnólogos entendam, isso não é a regra. É a exceção.

Juristas são céticos sobre as possibilidades da tecnologia. 

Para a maioria deles, não é possível um algoritmo replicar um esquema de análise de algum processo, tal como feito por um juiz. Até mesmo em aspectos parciais isso seria impossível. E, de fato, é nesses aspectos parciais que o aprendiz pode,  com mais facilidade, ser postado para ajudar o juiz.

Mineração de textos, deep learning, ferramentas de análise de dados não estruturados não são coisas para algoritmos, pensam os juristas. Mas algoritmos encontram padrões nesses dados textuais e os utilizam como estruturas operativas (ótica do machine learning). Dessa maneira, já são aplicados exitosamente em muitas áreas.

Os avanços da IA permitem trabalhar sobre uma matriz de hipóteses (antecedentes e respectivos consequentes - classes ou hipóteses) com as quais o algoritmo se vira para classificar um caso novo (pedido X, por exemplo) numa classe, segundo os atributos,  e, em consequência, aplica a regra correspondente (consequente). Em outros termos, opera do jeito que aprendeu. O aprendizado, em geral, é supervisionado (humanos ajudam e submetem a testes o aluno aprendiz até ser aprovado).  É natural a dificuldade de um jurista entender que ferramentas tecnológicas possam fazer esse caminho.  Um algoritmo que lê e entende? Para, né!

Conjuntos, matrizes, base de conhecimento, teorema disso e daquilo, bases não estruturadas, mineração de textos e suas novas possibilidades complementam-se com noções de algoritmo e das  linguagens adotadas para construí-los, gerando uma névoa difícil de espancar e sob a qual vicejam as dúvidas e ceticismos dos juristas.

Como se vê, cada lado tem de abrir-se para entender limites e possibilidades do outro. Nem a tecnologia pode atropelar o jurídico. Nem o jurídico pode rejeitar o imenso apoio que pode receber da tecnologia.  Há uma barreira de obstáculos epistemológicos a ser derrubada.




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